Sarau cultural reforça reflexão sobre a atuação da mulher negra na FHGV
“Sempre fui bem qualificada e numa dinâmica de grupo em processo seletivo de uma empresa saí sem passar para a próxima etapa. Chorei muito porque senti que estava sendo discriminada. Em outra entrevista de emprego, não contive o choro na frente de um gerente que me perguntou o motivo. Respondi: discriminação. O gerente disse que eu ia ter uma oportunidade e, depois desse trabalho na vaga de gestora – supervisora administrativa, outros surgiram”, conta a assistente administrativa Alcione Cardoso Marques Alves da Fundação Hospitalar Getúlio Vargas (FHGV).
Quem encontra Alcione pelos corredores da Fundação com a alegria estampada no rosto não imagina as situações que já passou por causa do racismo. Concursada na FHGV desde 2016, entre suas capacitações constam graduação em Administração, MBA em Gestão de Pessoas e especialização em Gestão Hospitalar. Além disso, ela está à frente de um bazar em Alvorada onde atua como empresária, ministra aula no curso técnico de Administração de uma universidade e desenvolve atividades como vice-presidente da Comissão Especial de Promoção de Políticas da Igualdade Racial (CEPPIR) da Fundação. A trajetória de Alcione revela que, na atualidade, ela é uma das Tereza de Benguela entre as trabalhadoras da FHGV. Tereza foi uma líder quilombola e uma das inspirações para a CEPPIR realizar um sarau cultural em homenagem ao Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-americana e Caribenha comemorado no último dia 25.
Sarau cultural
O sarau cultural contou com a declamação de poemas e a interpretação de músicas pela farmacêutica, poetisa e musicista Lilian Rose Marques da Rocha. “Desde muito cedo na minha casa os meus pais colocaram a importância da consciência de sermos negros numa sociedade onde estruturalmente existe o racismo. Desde muito cedo eu frequentava clubes negros como o Floresta Aurora em Porto Alegre. Nesses clubes a gente aprendeu a valorizar a ancestralidade, as histórias, as crenças e o poder de nos reconhecermos como negros”, declara.
Lilian recorda que na época da escola estava em cartaz o filme “Chica da Silva” que tinha uma música com esse mesmo nome. “Numa saída da escola fizeram um cortejo até minha casa cantando a música. Falei para minha mãe, a escola chamou os pais das crianças e o problema estancou. Eles fizeram isso para debochar. Fui a primeira de toda a família a passar no vestibular para farmácia na Universidade Federal do Rio Grande do Sul numa época em que não existiam cotas. Meus pais liam e nos orientavam a pensarmos por que essa diferença?”, relata.
Na opinião de Lilian a grande maioria das famílias negras não possui grupos para trabalhar essa questão. “Alguns negam a negritude. Nos processos de saúde, por exemplo, quando se pergunta raça e cor, muitos ainda não têm coragem de dizer que são negros, se dizem pardos e até brancos quando não são por terem dificuldades de se aceitarem. Existe o pejorativo negro. A partir de 1980, o movimento negro ressignificou a palavra e pegou para si como beleza, inteligência, empoderamento e conhecimento. No entanto, a grande maioria das famílias negras vivem em contextos estruturais sociais muito difíceis sem perceber e reconhecer o negro como belo”, ressalta.
O sarau cultural também aconteceu com a declamação por Elenara Martins Luz de “Mãe Preta” da poetisa Carol Dall Farras. “Escolhi essa poesia porque ela aborda as trajetórias das mulheres negras e é reflexiva ao falar da mulher negra como mãe, da sua ancestralidade e das suas dores. Sou funcionará da Prefeitura de Sapucaia do Sul há 21 anos. Talvez eu tivesse oportunidades melhores se além do meu título eu carregasse outra cor. Isso é forte. Na minha família sempre tivemos orgulho, pois fazemos parte da miscigenação. Provavelmente, sou tataraneta do estupro. Nem todas as pessoas da minha família se sentem verdadeiramente negras, mesmo com toda essa miscigenação e uma história que não é só da minha família. A história do estupro da mulher negra não aconteceu apenas com minha tataravó, pois ocorreu com muitas mulheres negras porque foi um projeto da miscigenação. Um projeto para tornar o país mais claro”, recorda.
Elenara destaca que existe a reprodução do racismo em algumas famílias negras. “Embora nós negros não sejamos racistas, muitos reproduzem o racismo e isso às vezes até dentro da família. Quando um diz que o nariz do outro é achatado, a sua gengiva é roxa e a minha não é. Isso acontece entre irmãos. Isso porque a cultura que nos foi imposta é que o mais bonito está no padrão europeu do colonizador com nariz fino, um corpo não tão arredondado e cabelo liso”, frisa.
FHGV
A presidente da CEPPIR, a enfermeira Zilmara Martins, durante o evento observou que “a data de hoje não é para festejar, e sim, de reafirmar a necessidade de enfrentar o racismo e o sexismo que as mulheres sofrem ainda na sociedade”. O diretor de Gestão e Desenvolvimento de Pessoas da FHGV Alex Borba dos Santos acredita ser necessário que as pessoas beneficiadas com as políticas públicas assumam o protagonismo das ações da Fundação. “Fico feliz em ver a Alcione e a Zilmara falando porque uma política como essa não consegue se estabelecer sem o público beneficiário assumir as atribuições. A direção da FHGV troca e essas pessoas vão ficar aqui fazendo as ações”, finaliza.